“Não temos mais nada a fazer. Agora é só um paliativo”.

Essa infeliz frase bem como outras semelhantes a ela (de mesmo cunho pejorativo) são constantemente declaradas por colegas médicos em ambientes hospitalares e até mesmo ambulatoriais ao se referirem a pacientes portadores de doenças graves e incuráveis. E ela está em pleno desacordo com os princípios médicos e com a ciência por detrás do famigerado Cuidado Paliativo.

Convido vocês a conhecerem um pouco sobre a história, conceitos e da importância e magnitude dos Cuidados Paliativos, para pacientes e familiares que se deparam com momentos de adversidades em frente às doenças graves e irreversíveis pela Medicina.

O termo paliativo origina-se da palavra em latim (pallium) e significa proteção, cobertor, manto. Faz menção aos mantos usados pelos cavaleiros das antigas cruzadas, para se protegerem das tempestades e intemperes por eles enfrentadas durante suas longas jornadas e batalhas.

Apesar do aumento dos estudos e do conhecimento a respeito dos Cuidados Paliativos, ainda há muitas informações conflitantes e dificuldade de entendimento por parte tanto dos pacientes e familiares quanto de uma parte expressiva dos profissionais de saúde a respeito do seu conceito, das suas indicações e do seu benefício.

Muitos profissionais ainda associam Cuidados Paliativos com os cuidados exclusivos da fase final de vida – e então se cria e perpetua-se um conceito de que todos os pacientes sob regime de cuidados paliativos estão com os dias contados; porém, não é esse o conceito e, Cuidado Paliativo abrange muito mais do que oferecer os melhores cuidados nos momentos finais de vida dos pacientes.

É comum que se ouça dizer que as casas que deram origem aos hospices nasceram na Europa; entretanto, a primeira vez no mundo em que se soube de locais que abrigavam peregrinos doentes e moribundos, à beira das estradas e dirigidas por voluntários, foi no mundo árabe, pelos mouros. Conta a história que um mandatário muçulmano legou a um filho, em 819 d.C.: “Construa abrigos onde muçulmanos doentes possam achar acolhida e encontrar cuidadores. Nesses locais eles serão tratados com compaixão, e os médicos poderão cuidar das suas doenças”. Desde então inúmeras hospedarias foram fundadas com o intuito de abrigar os peregrinos, oferecendo-os comida e conforto, sendo que algumas delas funciona até a atualidade.

No entanto, o hospice como o conhecemos hoje foi inspiração da Dame Cicely Saunders (enfermeira, assistente social e médica), fundadora do St. Christopher’s Hospice (Julho/1967), a instituição símbolo dos cuidados paliativos, que forma profissionais especializados nesta área do mundo todo.

A partir do ano de 1970, os EUA e o Canadá começaram a criar os seus hospices, integrados ao sistema de saúde local. No Brasil, o primeiro serviço de Cuidados Paliativos deveu-se à iniciativa da Dra. Miriam Martelete no Hospital das Clínicas de Porto Alegre (RS), em 1983. Seguiram-se o Hospital Conceição, também em Porto Alegre (1986), a Santa Casa de São Paulo (1986), o INCA (Instituto Nacional do Câncer – em 1989), o CEPON em Florianópolis (1989), a PUC em Sorocaba (1990) e o Hospital-Escola da Faculdade de Medicina de Botucatu (1990).

Em solo brasileiro, desde 2011, a Medicina Paliativa tornou-se área de atuação de seis especialidades médicas: Anestesiologia, Pediatria, Geriatria, Oncologia, Clínica Médica e Medicina de Família, e, consequentemente os órgãos de educação médica se mobilizaram para oferecer, em caráter oficial, formação conceitual e prática em Cuidados Paliativos aos médicos dessas especialidades. Em 2013, as especialidades de Cirurgia de Cabeça e Pescoço e Medicina Intensiva foram anexadas às anteriores.

A primeira definição pela Organização Mundial de Saúde (OMS) foi realizada em 1990 e definia os Cuidados Paliativos como sendo os cuidados totais ativos de pacientes cuja doença não respondia ao tratamento curativo, com o objetivo de alcançar a melhor qualidade de vida possível para pacientes e suas famílias.

Essa definição foi atualizada em 2002 pela OMS: Cuidados Paliativos são uma abordagem que melhora a qualidade de vida dos pacientes e de suas famílias diante dos problemas associados à doenças potencialmente fatais, por meio da PREVENÇÃO e ALÍVIO do sofrimento, por meio da identificação imediata, avaliação e tratamento impecáveis da dor e dos demais problemas FÍSICOS, PSICOSSOCIAIS e ESPIRITUAIS.

A partir dessa definição, os Cuidados Paliativos são descritos como uma abordagem extensível a “doenças com risco de vida”, na qual é necessária uma intervenção PRECOCE, em conjunto com tratamento modificador da doença.

Em 2017, a International Association for Hospice and Palliative Care (IAHPC) desenvolveu um definição global: Cuidados Paliativos são os cuidados HOLÍSTICOS ativos de indivíduos de todas as idades com sofrimentos importantes relacionados à saúde devido a doenças graves e, principalmente, de pessoas próximas ao final da vida. Tem como objetivo melhorar a qualidade de vida dos pacientes, familiares e cuidadores.

Mais recentemente, no ano de 2018, a OMS atualizou seu conceito anteriormente publicado, definindo como Cuidados Paliativos uma abordagem que melhora a qualidade de vida dos pacientes (adultos e crianças) e de suas famílias que enfrentam problemas associados a doenças com risco de vida. É uma abordagem que previne e que alivia o sofrimento por meio da identificação precoce, da avaliação e do tratamento correto da dor e de outras problemas físicos, psicossociais ou espirituais.

Após o novo conceito de Cuidados Paliativos pela OMS, fica CLARO e é importante frisarmos a transparente ampliação da atuação e abordagem de cuidados paliativos, incluindo dessa forma pacientes portadores de doenças potencialmente fatais, e não mais somente pacientes com doenças incuráveis, tornando-se deste modo um cuidado muito mais abrangente e bastante precoce.

Devemos evitar a dicotomização dos cuidados modificadores do curso da doença versus cuidados paliativos; de tal forma que os Cuidados Paliativos sejam considerados como cuidados simultâneos e complementares, podendo se indicados em qualquer momento da evolução da doença. Na medida em que ocorre piora do prognóstico e diminuição da possibilidade de realização de tratamentos modificadores, os cuidados paliativos se tornam PRIORITÁRIOS, até ficarem exclusivos na proximidade da morte.

De acordo com a OMS (2002) os princípios dos Cuidados Paliativos são:
Propiciar alívio da dor e outros sintomas estressantes.
Afirmar a vida e considerar a morte como um processo natural.
Não pretender apressar nem prolongar a morte.
Integrar os aspectos psicológicos e espirituais no atendimento ao paciente.
Oferecer um sistema de apoio e ajudar os pacientes a viver o mais ativamente possível até a morte.
Usar uma abordagem de equipe para atender às necessidades dos pacientes e de suas famílias, incluindo aconselhamento sobre luto, se indicado.
Melhorar a qualidade de vida e também poder influenciar positivamente o curso da doença.

A evolução sobre o conceito dos Cuidados Paliativos demonstra o amadurecimento e a incorporação da filosofia deste cuidar, para além da terminalidade. Entretanto, é importante ressaltar que tal prática ainda é carente e tímida em ações que evidenciem coerência e proporcionalidade, respeitando os princípios éticos da autonomia, beneficência e não maleficência, ofertando dignidade na vida e na morte dos pacientes e de todos aqueles que o cercam.

Um dos pontos chaves para a divulgação e amplo conhecimento sobre Cuidados Paliativos, fazendo com que sua prática se torne corrente e eficaz, é através da implantação dessa ciência na formação acadêmica dos profissionais de saúde, mediada por uma transdisciplinaridade consciente que permita aos profissionais capacitação e segurança no suporte ao processo de finitude de seus pacientes e respectivos familiares.

Oferecer Cuidados Paliativos, desde o diagnóstico de uma doença potencialmente fatal, possibilita amparar o paciente e sua família em diferentes momentos da evolução da sua doença, hierarquizando e otimizando recursos diagnósticos e terapêuticos, avaliando os benefícios esperados e evitando os possíveis malefícios, para o exercício de um cuidado amplo no alívio do sofrimento.

Os Cuidados Paliativos evoluíram de uma filosofia de cuidado voltada para pacientes com câncer em estágio terminal, para uma especialidade médica complexa que envolve o cuidado de pacientes e familiares que lidam com doenças crônicas e limitantes em diferentes estágios de evolução. Os cuidados paliativos devem ser integrados muito antes dos estágios terminais das doenças para as quais está indicado, a fim de que pacientes e familiares possam usufruir de maneira ótima de todos os seus benefícios.

Percebemos no decorrer da leitura que, podemos oferecer diversos tipos de cuidados e condutas em pacientes que encontram-se sob cuidados paliativos e, não meramente abandoná-lo com o preconceito de que não há mais nada para se fazer a partir deste momento. É imprescindível a disseminação do conhecimento e cultura dos Cuidados Paliativos em meio acadêmico e social, para que assim os pacientes e familiares recebam um tratamento e uma abordagem técnica-ética-humanitária na vigência de doenças graves e incuráveis pela Medicina.

Em 2022 o Conselho Nacional de Educação (CNE), por meio de alteração da Resolução CNE/CES nº 3, de 20 de junho de 2014, reconheceu, por meio das diversas manifestações realizadas por médicos paliativistas, que alunos de graduação em medicina devem receber formação e treinamento sobre competências específicas, incluindo em um amplo hall os cuidados paliativos. A Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) apoia a alteração da resolução que resultou nas novas Diretrizes Nacionais Curriculares (DCNs). Esse já é um excelente início para futuras melhorias.

Finalizo este artigo, citando o Dr. Scott Murray (Professor emérito da Universidade de Edimburgo e especialista em Cuidados Paliativos): “A integração é a única maneira de garantir o acesso do cuidado paliativo precoce ​​para a maioria das pessoas. O diálogo aberto e o planejamento devem ocorrer na comunidade, nos lares de cuidados e nas enfermarias do hospital, para que todos que dele necessitem possam se beneficiar. O cuidado paliativo precoce é, portanto, fazer mais pela pessoa, não menos. Na verdade, talvez seja melhor não chamá-lo de cuidados paliativos, mas apenas um bom cuidado e planejamento centrados no paciente, aos quais todos nós devemos aspirar”.

Texto baseado no livro: Manual de Cuidados Paliativos da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, 3ª edição, ano 2021.

 

Thayles Vinícius Moraes
Médico formado pelo IMES em 2009 (CRMMG: 50063)
Especialista em Clínica Médica e em Oncologia Clínica.
Auditor Médico em Saúde – MBA (Uninter – 2019/19).
Pós-graduação em Síndromes de Predisposição hereditária ao Câncer (HIAE, 2021/22)

Contribuindo para o fortalecimento da classe médica e dos serviços de saúde do Vale do Aço.

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