
Por muito tempo no Brasil a psiquiatria foi vista como uma especialidade para os “loucos”. Com o passar das décadas, e o crescente aumento de transtornos mentais (principalmente nas pessoas que ao olhar da sociedade eram “normais”), a área foi sendo mais explorada e respeitada (e necessária). No século XIX, ainda no Brasil colonial, com o crescente êxodo rural e consequente aumento dos espaços urbanos, a sociedade da época cobrava providencias para que fossem retirados de circulação aqueles que eram considerados vadios, desordeiros, loucos.
Loucos, alienados, dementes, possuídos, imbecis, idiotas, histéricos – são algumas das nomeações que eram dadas aos indivíduos que eram considerados inadequados socialmente. Daniela Arbex em sua obra “Holocausto brasileiro”, ainda no prefacio nomeado “Os loucos somos nós” traz à superfície de forma bem cristalina essa realidade:
“São sobreviventes de um holocausto que atravessou a maior parte do século XX, vivido no Colônia, como é chamado o maior hospício do Brasil, na cidade mineira de Barbacena. como pessoas, não mais corpos sem palavras, eles, que foram chamados de “doidos, denunciam a loucura dos “normais”. (…) Cerca de 70% não tinham diagnostico de doença mental. Eram epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornava incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas gravidas, violentadas por seus patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, eram filhas de fazendeiros as quais perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos”.
Os “alienistas” foram os antecessores dos psiquiatras modernos, e eram responsáveis por explorar, entender, cuidar dos “alienados mentais” (quem sofria de “alienação mental”, quem tinham a “mente doente”). Uma das mais renomadas obras de Machado de Assis “O Alienista” publicada em 1882, deixa claro que a sanidade mental é algo volátil, que muda rapidamente de acordo com o que é mais conveniente no cenário social do momento. Em suma, Simão Bacamarte, renomado médico no contexto da obra, decide abrir uma casa para os alienados, em nome da “ciência”, e desvendar os mistérios das patologias cerebrais. Contudo, grande parte da população rapidamente se tornou paciente da “Casa Verde” – loucos de amor, os que tinham mania de grandeza, os melancólicos, até mesmo uma senhora que “intercedeu por um infeliz” (o tal infeliz, nomeado como Costa, também trancado no nosocômio, pelo fato de ter perdido toda sua herança). Após uma revolta de alguns populares, depois que mais de 70% da população estava internada, Bacamarte muda sua teoria, exposta no trecho do capitulo XI:
“o alienista oficiara à Câmara (…) que verificara as estatísticas da Vila e da Casa Verde, que quatro quintos da população estavam aposentados naquele estabelecimento; que esta deslocação de população levara-o a examinar os fundamentos de sua teoria das moléstias cerebrais, teoria que excluía da razão todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não fosse perfeito e absoluto; que desse exame e do fato estatístico resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto que devia admitir como NORMAL e exemplar o DESEQUILÍBRIO das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto”.
Ou seja, os antes considerados alienados, agora se tornaram os normais e os “equilibrados” das faculdades mentais que se tornaram os “loucos”. Por fim, o alienista muda novamente sua tese, e conclui que na verdade o louro era ele próprio.
No livro Manual de Psicopatologia de Elie Cheniaux, o autor explora sobre o significado de normalidade, e classifica como “imprecisa” a distinção do normal e do patológico dentro da medicina. Para tentativa de definir “o normal” ele traz três critérios de normalidade: subjetivo, estatístico e qualitativo – e traz exemplos de que não há como preencher tais critérios de fato. Como exemplo do critério SUBJETIVO de normalidade ele traz o conceito de que estar doente é aquele que “sofre ou se sente doente” e contrapõe citando um paciente que sofre de síndrome maníaca, que apesar de se sentir muito bem, se encontra em um quadro enfermo. Em relação ao critério ESTATÍSTICO (ou quantitativo) ele traz que o “normal é sinônimo de comum, ou significa próximo à média” e novamente traz como contrariedade os exemplos de cárie dentaria e pessoas com o QI (quociente intelectual) muito alto – ambos os exemplos fogem da “média”, uma vez que a cárie se apresenta como uma patologia muito comum na população em geral e obviamente não é “normal” (é comprovadamente uma patologia odontológica) e aqueles com o QI elevado não são considerados doentes (e nem devem ser). Por fim para descrever o critério QUALITATIVO ele aponta que o “normal é aquilo adequado a determinado padrão funcional considerado ótimo ou ideal” e critica o fato de que os conceitos mudam totalmente de acordo com os fatores socioeconômicos, culturais, geográficos, temporais.
A autora Katia Mecler em sua obra “Psicopatas do cotidiano” afirma que esses psicopatas cotidianos não são aqueles divulgados pelas mídias sensacionalistas (como autores de crimes brutais, crimes sexuais, assédios morais), mas sim as pessoas ditas “comuns” que estão entranhadas no dia-a-dia – como exemplo lideres místicos, motoristas exaltados, pais chantagistas, crianças que ao serem contrariadas cometem atos cruéis.
Invertendo a ótica, tirando o foco dos pacientes, será que os profissionais da saúde são todos “normais”? E se forem também um tanto loucos? Contardo Calligaris em seu livro “Cartas a um jovem terapeuta” defende inclusive que um bom psicoterapeuta deve trazer consigo uma “boa dose de sofrimento psíquico” , não sendo indicado a profissão a quem segue o lema “estou muito bem, obrigado”, e explica as razões: primeiro que um futuro terapeuta deve antes de tudo ser um paciente (tantos para fins didáticos – aprender estratégias, métodos – quanto para perseguir a saga de “conseguir viver melhor”). Em segundo lugar, porque durante a trajetória profissional, o psicoterapêutica encontrará pacientes que parecem amarrados em sofrimento, e nesses momentos é importante que ele saiba que o tratamento foi efetivo pelo menos para um paciente: ele próprio.
As vezes encontraremos pessoas, oportunidades, situações em que ser “louco” será um mero detalhe, como expresso por Maria Bethânia em “Olha” (1992):
“Olha você tem todas as coisas
Que um dia eu sonhei pra mim
A cabeça cheia de problemas
Não me importo eu gosto mesmo assim”.
Um paciente psiquiátrico, que inicia um tratamento para transtorno de humor (transtorno depressivo maior por exemplo), as vezes consegue literalmente voltar a fazer o “mínimo” que antes parecia impossível: levantar da cama, retomar uma rotina (temos que pensar no fato que muitas as vezes são pacientes que não conseguem gerir as necessidades básicas do dia). Em contrapartida uma pessoa “normal” que celebra o fato de não precisar “tomar remédio de cabeça” ou que acha que terapia é “perda de tempo”, aparenta socialmente super bem, mas nas masmorras da vida não consegue gerir relacionamentos interpessoais. Cabe uma reflexão sobre mais um trecho de uma preciosa obra brasileira, lançada em 1972 pela banda “Os Mutantes” e interpretada maravilhosamente bem por Ney Matogrosso:
“Dizem que sou louco
Por pensar assim
Se eu sou muito louco
Por eu ser feliz
Mas louco é quem me diz
E não é feliz
Eu juro que é melhor
Não ser o normal”
Conforme exposto em um artigo escrito pela jornalista Rafaela Damasceno, Arnaldo Baptista, o compositor da letra, na época vocalista da banda Os Mutantes, seguiu como inspiração o pensamento a respeito de o quanto as peculiaridades de cada pessoa as tornam únicas e especiais, fazendo uma crítica nem tanto indireta a aqueles que não toleravam o que não era “normal”.
No fim das contas, a duvida segue a mesma, há diferença entre ser “louco” ou “normal”? Se houver, vale a pena a tal normalidade?